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CADA UM É UMA HISTÓRIA (por SILVANA LANCE ANAYA)
"Cada um é uma história, cada história é única, somos o resultado de nossas escolhas, experiências e daquilo que fazemos com o que nos acontece." (Silvana Lance Anaya)
Cada um carrega sua história envolta em alegrias, tristezas, traumas e aflições que junto ao ser de cada um se transforma numa experiência única em todo o universo.
Vivemos em uma sociedade massificada que propaga padrões de aparência e sucesso onde se prioriza o ter acima do SER, gerando frustração e retraimento por medo do fracasso, onde muitos nem mesmo conseguem ter ou sentem que podem SER. E sem acreditar que podem SER como vão acreditar que podem ter alguma coisa?
A atualidade traz também consigo uma angústia de solidão em meio à multidão, onde cada um procura um lugar que lhe traga a sensação de pertencer, procurando grupos que ditem sua conduta, indo muitas vezes ao desencontro da tão pretensa liberdade por aprisionar o seu eu verdadeiro com medo da rejeição, se deixando levar até mesmo por caminhos tortuosos na ânsia de tão somente se sentir parte de um grupo e carregar a sensação de aceitação.
Com tantas influências do mundo externo e do nosso próprio mundo interno baseado em nossas experiências pessoais, seria necessário um estudo individual pra analisar o que leva cada um de nós a reagir desta ou daquela maneira, pois pela nossa singular individualidade somos afetados de forma diferente pelas mesmas circunstâncias.
Dentre tantos indivíduos e suas histórias de angústias, vamos enfatizar neste texto aqueles que por motivos diversos expõem suas misérias em espaços públicos expondo também a desigualdade social e a falta de políticas publicas que atenuem diferenças num mundo capitalista que permite que pessoas simples, bizarras ou excêntricas façam parte da paisagem urbana, sendo ao mesmo tempo anônimos representantes de uma insensatez que perambula pelas ruas onde transparece a falta de dignidade e do alcance aos direitos humanos.
Eles são os “moradores de rua”, embora a rua não seja um lugar para se morar.
Não se trata apenas de exclusão social, mas também de uma exclusão existencial, cumprindo até mesmo uma expectativa da sociedade do que é um “ser que pertence às ruas”.
Mesmo com a ausência de um lugar social reconhecido, eles também são passageiros do tempo e da vida, mas seguem como clandestinos acomodados em miseráveis condições.
A INVISIBILIDADE SOCIAL
Num mundo globalizado onde tudo muda o tempo todo, vivemos em meio a transformações e reconstruções de conceitos e estruturas sociais que afetam a percepção, nos colocando em constante construção e desconstrução da realidade que enxergamos, mas ainda assim conservamos a necessidade básica de pertencer à uma sociedade e à uma família, a qual colabora para o nosso equilíbrio emocional. Viver nas ruas é, apesar da invisibilidade social, de certa forma deixar visível uma rejeição da sociedade, da família ou a rejeição de si próprio.
Muitos indivíduos que sobrevivem nas ruas não veem sua condição como vítimas da sociedade, subservientes carregam toda a culpa do fracasso por estarem ali, aceitando a rua como punição favorecendo a negligência social. Por não conseguirem lidar com a culpa, muitos entram num círculo vicioso de “culpa, punição e autodestruição”, a caminho de uma morte lenta e silenciosa.
Outros, nesta indigência material, por acharem que nada tem a perder, carregam uma hostilidade e raiva que pode gerar atos impensados. Sentimentos de inferioridade, ideação suicida, inanição e traços de depressão profunda também fazem parte da vida de muitos por consequência de perdas e a desestruturação provocada pelo histórico de dor, abandono e miséria.
Estes se tornam imigrantes num meio ao qual pertencem, sobrevivendo a margem da sociedade, vivendo um dia de cada vez o tão almejado hoje sem se preocupar muito com o futuro, não por escolha ou por terem alcançado um nível emocional com o controle da ansiedade, mas porque não sabem o que os espera e esta é a única opção.
A “visibilidade” deles em locais “inadequados” também provoca constrangimentos e comprometimento da paisagem urbana, então muitos são impedidos de frequentarem ou se alojarem em certos locais, o que corresponde a varrer a sujeira da política pública decorrente da falta de planejamento para debaixo do tapete da hipocrisia social, como se escondê-los fosse uma resolução viável.
Além do mais, lugares que deveriam funcionar como acolhimento, para muitos se tornam um ambiente hostil e inseguro, gerando até estranheza e desconfiança, não contendo o acolhimento emocional que tanto necessitam para sentirem-se seguros ou simplesmente “gente de verdade”, e ainda, boa parte apresenta dificuldade em usufruir do benefício (principalmente os vinculados a vícios) porque se adequar as regras do ambiente se torna algo difícil para quem teve que se acostumar as regras das ruas ou à um modo de vida estranho e inaceitável para a sociedade. Para outros, existe a resistência às regras por acharem que isto pode significar que admitiram subordinação e inferioridade. Poucos são os locais que disponibilizam atendimento mais abrangente com conteúdos sociais que tragam referência ao “ser e existir” e não apenas o suprimento da necessidade material, assim, boa parte deles acabam permanecendo na luta da fome, frio, chuva e outras condições as quais estão expostos.
Em outra visão, o tipo de atendimento prestado em abrigos ameniza a precariedade em que vivem mas transforma-os em dependentes da caridade ao invés de impulsioná-los na resolução do problema com aplicação de programas sociais que os transformem em sujeitos de sua libertação, fazendo-os acreditar que eles conseguem, afinal como diz o provérbio chinês “como ensinar alguém que acredita que nada pode?
Embora a vida não ofereça garantia, para muitos não existe nem mesmo a garantia da sobrevivência básica. Assim, sob o uniforme da invisibilidade, muitos seguem tentando sobreviver em meio as suas dificuldades, no vazio da existência lado a lado com a multidão que os ignora sem perceber a agonia do grito silencioso na alma de cada um. E na camuflagem da noite, enquanto a cidade dorme e permite que voltem aos seus “lugares” onde são visitados por anjos disfarçados de gente que lhes dão um pouco de conforto para alma e para o corpo, muitos ainda embalam sonhos e carregam expectativas, esperanças e a chance um futuro mais digno.
O CAMINHO DAS RUAS
Ninguém se torna excluído e invisível nas ruas repentinamente ou por uma simples escolha, homens, mulheres, idosos, adolescentes e até famílias inteiras seguem uma trajetória de afastamento da sociedade pela combinação de diversos fatores ou apenas um que seja forte o suficiente, entre eles: falta de trabalho e renda, rompimento dos vínculos familiares, adversidades pessoais e doenças (inclusive mentais), drogas, fatores ligados a desastres geográficos (secas inundações), entre outros que os impedem de ocuparem o devido lugar na sociedade.
Em cada trajetória, existe sempre uma história que raros estão interessados em ouvir, pois é mais fácil julgar do que se colocar verdadeiramente no lugar do outro “sendo o outro”. Em meio a complicados obstáculos, nem sempre o indivíduo encontra o apoio necessário ou até mesmo a disposição em aceitar ajuda. Muitos, em autoabandono, carregam um desamparo que vai além das condições físicas e materiais, carregam também uma solidão que se reflete não só no mundo externo, mas também no mundo interno pela falta de amparo de si mesmo não produzindo assim a força necessária para se reerguerem ou ao menos seguirem em frente.
A pobreza é um facilitador ao acesso destas míseras condições visto que muitos, tem em suas histórias além da falta das condições ideais mínimas para a sobrevivência, também a perda de seus cuidadores, a dificuldade ao acesso escolar, enfim, situações que os distanciam de um mínimo de solidariedade que poderiam encontrar de pessoas com quais tivessem alguma ligação afetiva.
Os conflitos familiares são expressivos nas histórias de quem sobrevive nas ruas, muitas vezes até por efeito cascata onde o provedor perde o emprego, se entrega a um vicio que gera violência domestica ou um desajuste psicológico vem a tona deflagrado pela circunstancia, onde ou este acaba nas ruas ou quem convive com este prefira as ruas do que suportar tamanha agressão emocional ou verbal em meio a conflitos muito difíceis de suportar. Alguns até veem a decisão de ir para as ruas como uma solução momentânea em meio as complicações da vida, não se tornando esta um destino final em todos os casos. Outros saem de seu local de origem e vão para longe em busca de emprego e melhores condições de vida, mas na falta de oportunidade esbarram com dificuldades diversas e sem meio de sobrevivência se tornam andarilhos carregando ainda o sonho de uma vida melhor ou ao menos a chance de poderem voltar para junto da família ou conhecidos.
Viver na sociedade não significa saber se defender dela, pois a visibilidade desta expõe também a fragilidade e a falta de malícia onde a lei do mais “esperto” se mostra vigente em qualquer círculo social. Na trajetória até as ruas, muitos carregam traumas de abusos, humilhações e traições sem o mínimo conhecimento de seus direitos como cidadão, vítimas ingênuas da maldade de muitos desprovidos de qualquer senso de piedade e hombridade.
As ruas também podem se tornar um refúgio quando a vergonha da derrota que engloba principalmente o desemprego, abandono, desempenho escolar ruim e outras diversas situações afetam profundamente indivíduos que acreditam não terem forças para mudar suas histórias, concluindo que seja melhor expor anonimamente sua extrema ruína nas ruas, rompendo com a sociedade, do que enfrentar a deplorável exposição. Em meio a toda esta situação, a fragilidade emocional tende a gerar uma desorganização de tempo e espaço, propiciando também uma crise de identidade, dificultando a reação necessária para se reerguerem e retomarem um lugar na sociedade.
Mesmo que a rua possa parecer uma rota de fuga ou um refúgio que em momento de desespero se mostra viável, ela é também um caminho perigoso onde a vulnerabilidade pode levar o indivíduo a sofrer violência do próprio “território” ao se deparar com agressividade e também com a crueldade humana que não escolhe lugar na sociedade (ou fora dela), ou ainda sofrer violência de parte da sociedade que, de forma distorcida enxerga o ser pertencente às ruas como um mal a ser exterminado, (onde o incômodo na verdade pode estar apenas refletindo a miséria interior de quem olha).
Viver nas ruas exige a adaptação a novos costumes, hábitos, linguagem e disposição de fazer parte de pequenas comunidades para que se protejam entre si e não percam o mínimo que possuem, isto também traz a sensação de “pertencer”, o que ameniza o sentimento de solidão, o sofrimento da separação e rejeição familiar, pensamento suicida, a fome e a baixa autoestima.
Em meio a multidão, esta “normalidade” de sobrevivência nas ruas acaba fazendo parte da paisagem atraindo olhares vazios que refletem a indiferença da sociedade.
O apoio da família e das pessoas que se importam se tornam importantes aliados para o resgate da dignidade, assim como a fé que tem influencia considerável na compreensão da situação, pois diante da injustiça, acreditar na justiça benevolente de uma providência divina, é sentir-se protegido e encontrar forças para suportar e se reerguer.
Para aqueles que encontram na rua seu único meio de sobrevivência, resta descobrir também um meio de (sobre) viver e resistir a partir das (im) possibilidades que esta oferece, adaptando-se a uma forma de pensamento e visão de quem olha para a sociedade de um ângulo que não deveria existir. As ruas que antes eram apenas caminhos, se tornam moradas solitárias e sombrias cheia de vulnerabilidade e risco, com muralhas invisíveis que os mantém distantes da sociedade.
ANIMAIS: ENCONTRO COM O AMOR INCONDICIONAL
Num submundo sem perspectivas favoráveis, não raro nos deparamos com um gracioso elo com a sociedade: os animais de estimação! Dotados de amor incondicional, eles sobrevivem junto aqueles que lhes dão atenção, carinho e até dividem a pouca comida, gerando uma relação de afeto que muitos nem mesmo haviam experimentado! O agradecimento animal vem em forma de companhia, proteção e carinho, o que se torna mútuo, despertando no sujeito um sentimento de amor e responsabilidade, se não por si, por outra vida que agora depende da sua e que pouco se importa com posição na sociedade ou faz distinção pelo ambiente em que vive.
Os animais também despertam o olhar das outras pessoas, trazendo visibilidade ao individuo excluído, atraindo simpatia e recebendo até mesmo alguma ajuda por este motivo, ou ao menos se alegram ao verem seus “filhos” receberem sorrisos, mimos e cuidados, sentindo-se também cuidados através deles.
Os animais se tornam tão importante a ponto de se transformarem na “família” que muitos nunca tiveram ou que perderam, trazendo assim um pouco de dignidade e alegria em meio a tantas desilusões e sentidos amortecidos, aliviando a dura realidade em que vivem, propiciando uma comunicação numa linguagem que ambos compreendem. Animal e homem encontram um no outro o cuidado que ambos perderam ou nunca tiveram.
Muitas histórias emocionantes se revelam nas ruas, até mesmo mudando a história daqueles que encontram nesta relação de afeto a força necessária para reagir e transformar suas histórias, culminando até mesmo em livros de sucesso e roteiro para filmes!
William Shakespeare escreveu: “Só os mendigos conseguem contar as suas riquezas.” Sem dúvida, mesmo em meio aos escombros da uma extrema pobreza, os animais se tornam verdadeiros tesouros.
O MENDIGO NAS RUAS E EM NÓS MESMOS
“Alimentar os famintos, perdoar a ofensa e amar os inimigos - essas são grandes virtudes. Mas, o que dizer quando descubro que o mais pobre dos mendigos e o mais insolente dos agressores estão em mim, e que preciso das esmolas da minha própria bondade? Que eu mesmo sou o inimigo que precisa ser amado. O que dizer então?” (Carl Jung)
Muitos não vivem nas ruas a céu aberto, mas encontram-se perdidos nas ruas de si mesmos carregando a miséria do amor próprio, mendigando carinho e afeição numa fome extrema, experimentando a sensação de solidão em meio a multidão e contentando-se com migalhas de atenção .
Vivemos numa época em que a tecnologia nos aproxima e não raro suscita também o incômodo com a proximidade do outro, causando receio de comprometer a individualidade culminando em relações efêmeras e transitórias, em constante transformação de valores que são substituídos ou questionados, nos levando à uma angustiante insegurança. Ao mesmo tempo, a falta de vínculos proporciona um sentimento de tédio e vazio existencial por trazer também a sensação da ausência de um espaço habitável que proporcione acolhimento.
As ruas, numa visão distorcida e desesperada pode até trazer para alguns a conotação poética e fantasiosa de liberdade como uma fuga de toda esta pressão psicológica advinda de uma sociedade que em tudo cria uma competição frenética, mas as ruas também contém suas próprias regras, onde num mundo a parte, desenvolve-se em paralelo um outro “ lugar sem lugar” e sem a pretensa liberdade.
Muitos carregam dentro de si um mendigo de afeto como uma tatuagem de desamparo infantil na alma, não conseguindo proporcionar a si mesmo o mínimo necessário para uma vida plena, dependendo sempre que o outro lhe proporcione, e na falta do outro, não encontram em si o respaldo suficiente favorecendo o autoabandono pode vir representado de várias formas.
Isto nos leva a refletir que independente de nossa condição social, estamos expostos a sensação de abandono e desamparo e muitos podem não acabar na inexistência das ruas por encontrar o amparo necessário das pessoas ao redor, por sua condição material ou pelo desenvolvimento do respaldo em si mesmo através da busca do autodesenvolvimento.
As vezes, em algum momento da vida sentimos que precisamos abandonar alguma coisa, isto faz parte de decisões que temos que tomar ao longo da vida, mas um abandono no sentido positivo para que possamos criar uma nova visão ou um novo caminho mais viável à nossa sobrevivência e perspectiva de vida. Não se trata de autoabandono, mas de amadurecimento.
Se muitos estão perdidos nas ruas, muitos também se encontram perdidos nos escombros de si mesmos, inertes, sem motivação ou algo que faça sentido em suas vidas, assemelhando-se na miséria, solidão, tristeza, fragilidade, medo e insegurança, a espera de um olhar, um gesto de amizade ou alguém que lhes diga “conte comigo”, permanecendo na sala de espera da vida (em posição mais privilegiada do que aqueles que se encontram literalmente nas ruas).
Em meio as ruinas de si mesmos, muitos procuram se sentir úteis ajudando ao próximo em suas dificuldades, gerando assim uma contribuição mútua, pois quem auxilia se sente recompensado por ter sua autoestima e autoconfiança fortalecidas.
O amor próprio é fundamental, pois se não nos amarmos, como vamos amar nosso próximo? Como vamos nos solidarizar com as vidas que perambulam famintas de dignidade se não tivermos solidariedade conosco?
Não podemos ser insensíveis ao outro em suas dificuldades, mas o ideal é que o amor e a solidariedade possam vir de um transbordamento de nós mesmos para não criarmos uma dependência externa numa exaustivas procura de preenchimento de nós mesmos através do outro.
O quadro "O Grito" de Edvard Munc exprime bem o tormento humano.
O quadro O Grito (1893-no original Skrik), obra de arte expressionista do pintor norueguês Edvard Munch retrata um profundo sentimento de angústia. As formas distorcidas e a expressão do personagem revelam a dor, o desespero e os conflitos do ser humano num grito como forma de expressão desses sentimentos.
“Passeava com dois amigos ao pôr do sol quando o céu ficou de súbito vermelho-sangue. Eu parei, exausto, e inclinei-me sobre a vedação. Havia sangue e línguas de fogo sobre o azul-escuro do fiorde e sobre a cidade. Os meus amigos continuaram, mas eu fiquei ali a tremer de ansiedade e senti o grito infinito da Natureza.” (Edvard Munch)
MAL ESTAR NA SOCIEDADE
"A felicidade humana, por conseguinte, parece não ser a finalidade do universo, e as possibilidades de infelicidade realizam-se mais prontamente. Essas possibilidades estão centralizadas em três fontes: o sofrimento físico, corporal ; perigos advindos do mundo exterior e distúrbios ocasionados pelas relações com outros seres humanos, talvez a fonte mais penosa de todas" (Sigmund Freud)
Na atual sociedade o tempo parece sempre escasso, carregando consigo uma extrema ansiedade gerada pela competição, pelo desemprego e pela violência que toma o lugar da compaixão por conta do medo, então muitos destes que moram nas ruas, dependem da caridade dos poucos que, independente do tempo que corre veloz, voltam o olhar para enxergá-los como semelhantes, onde o amor ao próximo grita mais alto do que o temor ou então se comovem com a situação porque de alguma forma entraram em contato com ela por algum tipo de experiência.
No imaginário social eles são rotulados de muitas formas e o perfil se mostra cada vez mais variado, visto que a desigualdade social envia para as ruas cada vez mais pessoas atingidas por motivos diversos.
As reações que provocam são as mais variadas: piedade, insegurança, medo, alguns se sentem impelidos a prestar auxílio, muitos julgam que são folgados e desocupados sem mínima força de vontade, outros chegam a humilhar e boa parte simplesmente os ignora, até porque ignorar camufla o mal estar provocado pela voz do chamado insistente da solidariedade numa conscientização de uma miséria inaceitável à um ser humano.
Nas ruas, eles se tornam alvo de mal estar em muitos aspectos: a visão deprimente, o mau cheiro que exalam, a prostituição e principalmente a marginalização decorrente muitas vezes de drogas e alcoolismo, onde para manter o vício, principalmente do crack, realizam pequenos furtos ou se envolvem com a criminalidade se tornando informantes da rotina de moradores e comerciantes. (As drogas nas ruas se torna um grande problema, pois esta precisa de medidas específicas e tratamento adequado). Esta correlação estreita com a marginalidade de uma parte deturpa a visão de outros, ignorando a singularidade de cada indivíduo.
Frente a esta situação os moradores de rua adaptam-se a grupos, passando a conviver em pequenas comunidades, onde protegem uns aos outros e os poucos bens materiais que possuem, desenvolvendo até mesmo alguma afetividade. Nesta convivência adquirem novos costumes, hábitos e passam a desenvolver gírias e linguagem próprias.
O fato de não terem uma identidade social facilita o estereótipo negativo e o mesmo medo que muitas vezes causam é também uma armadura para eles, pois muitos também sentem medo das pessoas e do que estas podem lhes causar por conta da intolerância. A capacidade de permanecerem imperceptíveis se torna uma habilidade interessante para que possam perambular livremente.
A mesma invisibilidade que experimentam no dia a dia não se aplica quando se tornam alvo de preconceitos ou são acusados por alguma infração, sofrendo muitas vezes injusta punição somada a miséria a qual já se encontram condenados.
Mesmo que muitos deles tenham uma atividade que lhes permita não depender exclusivamente da bondade alheia, a falta de documentação, trabalho formal e local fixo, acaba sendo um entrave no alcance dos direitos como cidadãos.
A falta de solidariedade também se reflete em muitos lugares que deveriam servir como intermediadores, onde infelizmente valores materialistas acabam tendo um peso maior.
Esta exclusão da sociedade refletida aqui é sobretudo simbólica, pois sempre existe a tendência de grupos que atendem ao direitos humanos fazerem um trabalho dentro de seu alcance e de grupos com afinidades de solidariedade que prestam auxilio trazendo um olhar mais otimista a esta triste situação, onde principalmente o alimento se torna uma fonte de prazer e uma demonstração de afeto e algumas poucas palavras e um gesto de atenção permite que experimentem um pouco de dignidade.
O sentimento de rejeição muitas vezes se torna uma ferida aberta onde já nem mesmo se sente dor, pois acaba anestesiada pela consentida invisibilidade e perda do direito de sentir. A dor é amenizada através de uma defesa emocional ou pelas drogas que neste meio se torna permitida como uma busca de amenizar o contato com a dura realidade. Mas a maioria ainda preserva, mesmo que precariamente, algum conhecimento e a consciência de sua própria situação.
Em meio ao anonimato das ruas também se encontram pessoas com talentos contidos ou desperdiçados pela falta de oportunidade ou porque levaram uma rasteira da vida, nada tendo de alienados como muitos podem pensar, alguns já tiveram até posses e família e apesar da insegurança do presente, ainda revelam uma surpreendente esperança quanto ao futuro, numa visão e percepção brilhante e única da vida e do ser humano. A experiência de muitos ali, revela verdadeiros tesouros escondidos nos destroços da sociedade.
Em sua obra o “Mal-Estar na Civilização” (1930) Sigmund Freud aborda o fato que a sociedade produz mal estar nos seres humanos, ou seja, para o bem da sociedade em face da organização das relações humanas existe um conflito entre instinto e cultura que aborta o prazer e dificulta o alcance da felicidade.
A sociedade evoluiu impondo novas regras e criando outro tipo de mal estar moderno correspondente a diversos fatores que geram insegurança em meio a uma sociedade que não oferece amparo e bem estar, favorecendo doenças psíquicas como depressão, síndrome do pânico etc, produzindo uma consequente insatisfação. Se a imposição de regras gera mal estar nos seres humanos a sociedade não demonstra mal estar no que se refere a sua falta de proporcionar sem distinção o que é devido a todo individuo.
É triste observar tantas vidas perambulando pelas vielas da vida, anônimas e invisíveis, despidas de sua identidade, seus direitos, sem lugar, dopados, sobreviventes emocionais com a alma cheia de cortes e arranhões onde um simples olhar que os enxergue ou uma mão estendida tem o poder de trazer por alguns instantes a percepção de que, apesar de banidos da sociedade, ainda são seres que habitam a vida.
AS RUAS COMO CAMINHO DA DESUMANIDADE
No texto de 1927 “O futuro de uma ilusão” Sigmund Freud escreve que “civilização ou cultura é tudo aquilo que distingue e separa a vida humana de suas condições animais e se distingue da vida animal” e demonstra a preocupação sobre tantas transformações que a humanidade ainda sofreria no contínuo processo civilizatório.
Desde Freud, é desconfortável observar que a civilização evoluiu em alguns aspectos e em outros vemos a triste exposição de uma desumanização, pois se o intuito da civilização é impor regras para proteger o individuo de si mesmo (visto que possuímos tendências destrutivas e antissociais), falha ao não protegê-lo do próprio processo civilizatório que explora a natureza e os animais indiscriminadamente, estabelecendo relações de poder para que as leis sejam respeitadas pelo povo, propagando o trabalho como fonte de obtenção de uma vida confortável com bens e riquezas quando na verdade benefícios e riquezas são distribuídos de forma desigual e as leis falham deixando brechas propositalmente desfavorecendo o mais fraco. Pregando uma ilusão de que todos possuem iguais oportunidades.
Não é difícil encontrar na excentricidade das ruas indivíduos que perambulam despidos de si mesmos e de seus direitos mas que em seus delírios (ou quem sabe lucidez) se dizem ao menos munidos de sua liberdade por estarem distantes de uma sociedade consumista e neurótica que paga um preço muito alto pela escravidão travestida de liberdade. Seriam estes representantes de uma rebeldia em busca de uma liberdade perdida ou apenas seres expulsos da sociedade por não terem uma representatividade válida? Em contrapartida, a rua como caminho de liberdade não se mostra também viável, pois se transforma em um prisão de miséria e dor contendo também suas regras, abolindo a aspiração da pretensa liberdade, propiciando uma insuportável angústia existencial.
Lado a lado com estas pessoas que fazem da rua a sua morada, sem alcance da proteção social devida, com ausência de participação política, a sensação de não pertencimento, solidão, etc, caminha também o estereótipo da loucura, pois associá-los à ela se torna quase uma normalidade como se fosse uma explicação plausível.
Mas afinal, dependendo da ótica de visão, também parecemos loucos ao permitir que a ciência e a tecnologia que são marcas de evolução e desenvolvimento, nos afaste da convivência humana nos distanciando de relações afetivas, nos transformando em máquinas a olhar para o cenário da miséria nas ruas quase como uma realidade virtual como se esta nada tivesse a ver com nosso mundo real.
Enfim, a rua deveria estar destinada a ser apena um lugar de passagem e não lugar de morada com seus esconderijos fétidos e sombrios para parte de seres humanos que abandonados nas esquinas sem nome, se encontram despidos não apenas de seus direitos, mas de um mínimo de dignidade, relegados à outra dimensão onde paira o esquecimento, a invisibilidade espelhando uma vergonhosa ferida social numa condição de desigualdade e de violação dos direitos humanos, vítimas de uma sociedade fria e egoísta que ao invés de assumir sua culpa, relega a estes a punição de não pertencer a ela como consequência única de seu próprio fracasso, quando na verdade representam a ruína de uma sociedade que ao invés de criar uma proximidade onde todos alcancem o mínimo de dignidade, cria abismos sociais ao permitir que muitos tenham dificuldades ou não obtenham seu legítimo vínculo com a vida munidos de seus direitos, transformando-os em caricaturas de si mesmo moldados na injustiça.
Embora semelhantes, somos seres diferentes entre si e possuímos diferentes habilidades, portanto, mentes privilegiadas que alcançam a liderança em vários cenários, carregam a responsabilidade de justas decisões e bons exemplos, representando verdadeiramente a sociedade em todos os seus níveis, distribuindo justiça, evitando também o cultivo da hostilidade e revolta dos que sentem prejudicados.
“Pode-se perguntar de onde virão esses líderes superiores, inabaláveis e desinteressados, que deverão atuar como educadores das gerações futuras, e talvez seja alarmante pensar na imensa quantidade de coerção que inevitavelmente será exigida antes que tais intenções possam ser postas em prática” (Sigmund Freud)
A situação de rua em que se encontram milhares de pessoas é um quadro deprimente de um sistema que produz uma condição ineficiente onde uma minoria detém grande parte das riquezas produzidas, permitindo um cenário de vulnerabilidade social e miséria epidêmica.
Todos nós, como seres humanos, constituímos uma sociedade e temos como missão dominar os instintos nocivos que nos afastam da pretensa humanidade. Colocar a culpa só nos governantes ou nos detentores do poder e riqueza seria não admitir nossa responsabilidade. Cada um é uma parte que faz parte de um todo e se cada um fizer a sua parte pensando também nos demais, nas mínimas coisas, preservando o respeito e o amor (começando por si mesmo), então o caminho da evolução dos seres humanos estará garantido e o mundo deixará de exibir cenários aterradores.
Enquanto a humanidade sobrevive, se defendendo até mesmo de si mesma, ainda resta esperança de que esta finalmente venha exercer o seu digno papel, propiciando não apenas sobrevivência, mas “vida” com o mínimo de dignidade ao alcance de todos, inclusive das futuras gerações.
FIM
Autoria:
Silvana Lance Anaya
Psicanalista e Psicoterapeuta Especialista em Psicodrama e Transtornos Alimentares, MBA Coaching
referências:
SIGMUND, F. O mal-estar na civilização (1930)
SIGMUND, F. O futuro de uma ilusão (1927)
Texto especialmente escrito para o livro de Rodrigo Tavares "Democracia e o Abismo da Classe Social"
Os Textos de conscientização sobre relação homem/animal estão reproduzidos no LIVRO de Rodrigo Tavares
"O DIREITO DOS ANIMAIS E DEVERES DOS HOMENS" disponível no site clube dos autores.
* Permitida a reprodução dos textos ou parte deles desde que citada a autoria.